A sala estava repleta de pessoas, uns eram testemunhas, outros réus, e ainda havia alguns que eu não conseguia identificar o que faziam naquele recinto. Mas lá estavam todos, uns andando de um lado para outro, outros sentados e calados, alguns de pé. Olhava atentamente as expressões daqueles, que algemados, esperavam ser interrogados. Ao lado dos policiais de olhar sombrio, os réus enfileirados, permaneciam olhando resignadamente para o chão. O piso de taco de madeira, já antigo, dava um certo aspecto pesado no antigo Fórum Mário Guimarães no centro de São Paulo. Era eu ainda muito jovem, e aquela era minha primeira audiência criminal como advogado.
Meu cliente, um pobre rapaz da periferia, era acusado de juntos com amigos furtar peças de automóvel. Ao chegar com sua mãe, uma senhora de olhar sofrido, ele logo me reconheceu e disse: ” Mãe, este é o Dr. Fernando, meu advogado ” -, fiz um leve gesto com a cabeça como que a cumprimentasse de forma cordial, e perguntei ao réu, ” Como está?”, mais que depressa sua mãe dirigiu-se a mim e disse, ” Doutor, meu filho é inocente, sempre foi um bom rapaz, um bom filho, só tenho ele neste mundo “, como que a princípio concordasse com ela, pedi para conversar com o réu por alguns minutos a sós.
A medida que eu conhecia melhor sua personalidade, podia observar que por trás daquele acusado, existia uma boa pessoa, um bom filho. Contou-me que realmente não teve participação no crime, e que sua maior riqueza, era estar ao lado da família, dos irmãos, da mãe que o criou sozinha após seu pai ter abandonado a família. Me perguntava como eu, um Advogado, poderia estar vendo o lado bom daquele réu. Internamente tecia uma forte auto crítica ao julgar minha forma de entender uma questão criminal. O ilícito penal e o processo penal é de certa forma, algo técnico na forma que se apresenta. Minha auto censura, estava no componente de ingenuidade da minha parte, ao iniciar um processo de credibilidade sobre a real idoneidade do réu, após tê-lo conhecido melhor.
Enfim, era minha primeira audiência, e a primeira audiência, a ” gente nunca esquece”. O movimento do Fórum, os rostos aflitos das testemunhas, os guardas, o elevador, o promotor, o juiz, as algemas, tudo era muito novo e aterrorizante. Com insistência ainda me indagava: Estaria sendo um bom advogado acreditando na boa-fé do réu? Ou estaria sendo por demais ingênuo? Todas essas questões, me passavam pela mente. Por fim, ao ser chamado, com passos firmes e postura decidida, entrei na sala de audiência, e fora dado início aos trabalhos. Após uma hora, a decisão surgia: o réu havia sido inocentado por falta de provas. Sua mãe chorou ao receber a notícia, o réu com os olhos marejados, a abraçava colocando seu rosto no ombro; o clima era de alívio e emoção.
Ao sair me despedi, e ele apenas me disse. ” Doutor, obrigado por tudo” . Logo ao atravessar a rua, sem que eles me vissem, acompanhei os passos dele e da sua mãe, que abraçados em soluços, entraram na Catedral da Sé. Logo ao entrarem pude constatar de longe, que o réu, num gesto fraterno, ajudava um velho senhor a subir as escadas da Igreja, como um verdadeiro bom filho. Com um olhar perdido, continuei a caminhar pensando e refletindo, quantos filhos e rapazes bem criados, não possuem este gesto; e como um filme, lembrei-me do olhar de sua mãe ao afirmar sua inocência.
A partir daquele dia, descobri a grandeza do trabalho de Yitschac cavando poços, descrito na Torá, que significava extrair águas que existem no interior da terra. Na verdade o chão e as pedras que as ocultavam apenas precisavam ser retirados para revelar a riqueza lá contida. Todo ser humano sempre tem seu lado bom, basta procurar, extraindo o chão e as pedras, dessa forma, com certeza sempre encontraremos uma riqueza ali escondida, talvez nunca revelada pela nossa pouca capacidade de descobrir o lado bom de cada um.
Depois da minha primeira audiência, passaram-se mais de 800, mas sempre me lembro de Yitschac cavando poços, do meu primeiro cliente, e de que devemos sempre ver o lado bom das pessoas. Afinal como dizia o Rebe, ao procurarmos sempre ver o lado bom dos outros, Deus nos imitará e fará o mesmo conosco: sempre verá com bons olhos o nosso lado bom, e enxergará com misericórdia os nosso defeitos.
Tenha um sábado de paz e uma semana feliz !
Fernando Rizzolo