O presidenciável tucano, José Serra, disse em entrevista nesta segunda-feira (10) à rádio CBN que, “sim”, é de esquerda. Mas deixou claro que não gostou da pergunta de Heródoto Barbeiro. Ela remexe um problema mal resolvido pelo ex-fundador da esquerdista AP e presidente da UNE em 1963-64, que, quase meio século depois, como o homem que virou suco, tornou-se o candidato da direita.
Por Bernardo Joffily
A pergunta foi: “O senhor é de esquerda?” E a resposta: “Do ponto de vista da análise convencional, do que é direita e esquerda, sim. Não é uma categoria que hoje em dia eu uso. Mas, como você me perguntou, sim.”
Um cacoete, duas consequências
É um vício da direita brasileira – e, no fundo, uma demonstração de fraqueza – a resistência em se assumir como tal. O presidente da França, Nocolas Sarkozy, não tem o menor problema em falar “nós, da direita”. Mas os direitistas tupiniquins são sempre “de esquerda” ou “centroesquerda”, no máximo “de centro”.
Uma consequência desse cacoete tem sido a preferência por ex-esquerdistas arrependidos na hora de se fazerem representar politicamente. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, exilado durante a ditadura, foi um caso clássico. O candidato a presidente José Serra não fica atrás.
Outra consequência é tentar aposentar a própria distinção entre direita e esquerda. Tal e qual fez Serra na entrevista, ao dizer que “não é uma categoria que hoje em dia eu uso”.
Direita e esquerda: a lição de Bobbio
A tentativa de desqualificação não é uma exclusivamente brasileira, como, ao que dizem, a jabuticaba. Depois da queda do Muro de Berlim e da União Soviética, houve um colossal esforço globalizado, da direita, para aposentar esta distinção surgida na Revolução Francesa e que desde então organiza o espectro político em todo o mundo.
Coube na época ao pensador italiano Norberto Bobbio (1909-2004), que não era nenhum bolchevique, refutar a tentativa de aposentadoria em um pequena grande livro, intitulado precisamente Direita e esquerda. Lançado em 1994, em poucos meses o livrinho vendeu meio milhão só na Itália, correu mundo e cortou o barato dos aposentadores.
Cheirinho de naftalina
Serra, pelo que falou na CBN, não leu o livro de Bobbio. Porém repete a tese que o intelectual italiano destroçou, enquanto, na caça de votos, tira do baú o velho figurino “de esquerda”, ainda que este exale um inconfundível cheirinho de naftalina e desde há muito não lhe caiba.
Não cabe porque, desde a Grécia antiga, a ‘politiké’, como atividade de condução da ‘polis”, só faz sentido pensada no coletivo. O coletivo que escolheu Serra como seu candidato presidencial – formado pelo bloco demo-tucano-midiático – é a direita, de Antonio Carlos Magalhães Neto a Bornhausen, filho, e Paulo Maluf. E a direita escolheu-o porque ele provou, em oito anos como ministro de FHC, um e meio como prefeito e outro tanto como governador de São Paulo, que governa para ela.
Perguntado pela CBN sobre o projeto privatista do PSDB, Serra disse na entrevista que isso “é trololó”, “é campanha eleitoral” e ele “não tem nada assim em vista”. Barbeiro esqueceu de perguntar-lhe porque privatizou a Nossa Caixa em São Paulo. Mas perguntou sobre a Telebrás assumir o projeto de universalização da banda larga; a resposta foi que “devia haver um debate maior” para “ver se realmente é a melhor opção”. Sobre a hidrelétrica de Belo Monte, Serra questionou por ser “inteiramente bancada pelo governo”. E sobre a Petro-Sal, disse que “não seria absolutamente necessário”, pois “podia ter ficado” o mesmo esquema de concessões petrolíferas montado por FHC.
Também sobre política externa o conteúdo da resposta foi o da direita. Sobre o Mercosul, disse que “foram fixadas metas muito ambiciosas” e “você tem que dar um passo atrás”: “Vamos ficar com o Mercosul como zona de livre comércio e vamos flexibilizar o resto”. Integração continental? Não, pois “é só espetáculo”.
Slogan de Serra é o do conselheiro Acácio
Percebe-se porém, na CBN e em todos os pronunciamentos do presidenciável demotucano desde seu lançamento um mês atrás, o enorme incômodo de Serra: ser um candidato da oposição ao governo Lula que não pode assumir que é oposição ao governo Lula.
O circo não veio abaixo porque, em quase uma hora de entrevista, ninguém fez esta perguntinha que não cala: Por que ser oposição ao governo Lula?
Assim, Serra pôde falar uma hora sem fazer uma só crítica ao presidente. Longe disso, arriscou até uns elogios. E repetiu seu provável slogan eleitoral, que é outra pérola do defensismo: “O Brasil pode mais”.
É claro que qualquer um sempre “pode mais”. Este bem poderia ter sido o lema de uma hipotética campanha presidencial do conselheiro Acácio. E São Paulo, não “pode mais”? Existiu até hoje algum governo no mundo capaz de dizer que não “pôde mais”?
Porém a direita brasileira, diante dos esmagadores, reiterados e crescentes índices de popularidade do governo, não se arrisca a afirmar que é oposição e quer mudar o rumo do país. Não se atreve a defender o seu governo, FHC, nem menos ainda compará-lo com o atual. Tenta reduzir a um concurso de biografias o que na verdade é uma disputa de projetos.
Sim, José Serra já foi de esquerda, mas isso faz quase meio século. Hoje, como em 2002, é o candidato da direita. A novidade é que, há oito anos, foi o candidato da direita na defensiva porque era da situação, devido ao desastre do governo FHC. E agora é o candidato da direita na defensiva porque é oposição, devido ao sucesso de Lula. Fará um pobre papel durante a campanha se não achar, nestes quatro meses e pouco, um discurso menos gaguejante.
vermelho
Rizzolo: Com efeito o discurso da direita só é legitimado quando rotulado de “centro-esquerda” ou da melhor forma classificatória, dando-lhe uma veste “universalista”, desqualificando a terminologia direita e esquerda. Bem trabalhado por Bobbio, esse truque mágico da direita atual, acalenta as intenções na tomada do poder reduzindo a resistência daqueles que já descobriram o engôdo neoliberal, sempre na tentativa de se desfazer da camisa e do rótulo direitista.
Serra há muito deixou de ser desenvolvimentista, progressista ou de esquerda, representa sim a fidelidade dos grandes interesses, que confiam na sua predileção pelo privado, fazendo uso do seu antigo passado que lhe serve em última instância, para legitimar seu discurso em prol dos interesses dos grandes grupos, faz sim uso da sua antiga biografia como instrumento de rasteira ao Estado provedor, fazendo-se passar por alguém que um dia já foi, mas que apenas aos incautos é capaz de iludir…
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