As Mães e a Escola de Tempo Integral

Era assim toda quarta-feira: ela chegava pela manhã com uma pequena sacola, no mesmo ritmo de quem acabara de descer de um ônibus vindo da periferia de São Paulo. Havia anos trabalhava na limpeza do meu escritório e de tantos outros no mesmo prédio. O olhar sofrido e as mãos cansadas faziam-na parecer muito mais velha do que realmente era. Neusinha, a minha diarista, era mãe solteira e cuidava sozinha de um menino de 11 anos.

Nosso contato era pouco, até porque, para não atrapalhar o andamento da limpeza geral, eu aproveitava aquelas quartas-feiras para ir ao fórum. Contudo, naquele dia, algo estranho no olhar de Neusinha me chamou a atenção: os olhos marejados indicavam certa tristeza, dando ao rosto branco daquela nordestina um contorno de aflição.

Meio sem jeito, e já de saída com o paletó na mão, perguntei a Neusinha se estava tudo bem. Timidamente e num rompante de desabafo, ela se pôs a chorar. Com calma, pedi que ela me contasse o que havia acontecido, na tentativa de acalmá-la com um gesto de amizade e solidariedade.

– Sabe o que é, doutor, meu filho está envolvido com drogas; ele me contou tudo ontem à noite. Tudo começou na porta da escola pública em que ele estuda. Ele estuda no período da manhã, mas à tarde fica com más companhias.

Entre um soluço e outro, trouxe-lhe um copo com água, o qual foi levado à boca como se contivesse um doce remédio.

– Não tenho com quem deixá-lo. Preciso trabalhar e é aí que ocorre a desgraça – ela disse, olhando-me com um ar de cumplicidade, numa linguagem simples, mas carregada de uma tristeza incalculável.

Minha consciência obrigou-me a acalmá-la e a dispensá-la, pagando-lhe pelo dia de trabalho não concluído, pois seu estado emocional era péssimo. Em seguida, ainda sob o impacto daquela cena, a caminho do fórum, entre centenas de pessoas que aguardavam o metrô, pus-me a pensar no papel da escola de tempo integral e em sua importância para a formação dos jovens, em seu papel de manter o jovem ocupado, em tranquilizar as mulheres que trabalham fora e não têm com quem deixar os filhos, enfim, naquilo que chamo de “tutela educativo-protecionista”.

O que realmente vemos hoje é o descaso do poder público na implantação da verdadeira escola de tempo integral, pois o que há – e em pouquíssimo número – são escolas que disponibilizam uma espécie de duplicação de jornada, fazendo um segundo turno à imagem e semelhança do primeiro, sem dar sentido à amplitude educacional de outras disciplinas como arte, educação física, visita a museus, estímulo à leitura, enfim, mudando o projeto político-pedagógico das escolas.

Já no balanço do trem do metrô e nas paradas cansativas das estações, imaginava quantas Neusinhas pelo Brasil não sofrem por saber que seus filhos não estão protegidos pela “tutela educativo-protecionista” que as escolas de tempo integral poderiam oferecer à sua prole, quando estão trabalhando, longe de casa, sustentando seus lares. Pensei também que a miséria, as drogas, o desamparo são filhos do abandono total do Estado na área da educação, e que melhor do que as palavras de consolo, a indignação e um copo com água para abrandar o soluço de um choro profundo é oferecer uma educação cidadã a todos, com investimentos maciços num único ideal de escola pública, a escola de tempo integral. Talvez, se ela existisse, aquela quarta-feira seria diferente para todos nós, em especial para tantas Neusinhas, diaristas pobres, trabalhadoras nas fábricas, nos campos, nas grandes cidades do nosso país, que sem esperança soluçam por seus filhos perdidos.

Fernando Rizzolo

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Biblioteca:um espaço mágico

Na hora do intervalo, entre uma aula e outra, as coisas aconteciam. Eu a via, conversávamos, nos olhávamos, mas nos anos 60 namorar na escola era proibido. Quase sempre os encontros se davam no intervalo. Era naquele momento mágico que eu desenvolvia minha capacidade de compreensão da afetividade nas discórdias tão comuns dos primeiros encontros com as primeiras namoradas. Aquele sinal do famoso “recreio” era o prenúncio de fazer e refazer os ingênuos amores dos meus 15 anos.

Foi exatamente nessa época que descobri na minha escola um lugar especial: a biblioteca. Lá eu podia entender através dos versos de Vinicius de Moraes, Drummond ou Fernando Pessoa que aquele sentimento jovem, apaixonado, também era comum aos mais velhos e viajava nos enlaces e desencontros dos meus ídolos da literatura. Era a eles que eu me socorria na solidão do término de um romance; era na biblioteca que encontrava as palavras mais doces enviadas por carta àquela menina “que eu amava”, da terceira fila da minha classe.

Talvez o socorro à biblioteca e aos livros se desse muito mais porque a poesia, além de escrita, era cantada por grandes nomes da literatura, algo que hoje já não existe mais. Unir poesia e literatura com a melodia, como num casamento perfeito, sonorizava o encanto poético e aflorava em mim o gosto pela leitura. E era bem ali, na antiga biblioteca da minha escola, que eu me curava dos amores perdidos. Os remédios mais comuns eram Vinicius de Moraes e Fernando Pessoa. Além disso, era na mal iluminada biblioteca que eu e os demais alunos costumávamos tirar todas as nossas dúvidas sobre tantos assuntos que nos afligiam, típicos de uma adolescência carente de informações.

Desenvolver o gosto dos alunos pela literatura nos dias de hoje é um desafio aos educadores. A rapidez das informações pela internet, a banalização dos sentimentos, a praticidade em conquistar novos amores – o “ficar” – já não nos fazem socorrer de forma contumaz ao encanto das poesias.

Foi com base nessa percepção que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei n. 12.244, que visa à “universalização das bibliotecas nas instituições de ensino do país”, determinando que as escolas públicas e privadas de todos os sistemas de ensino do Brasil deverão ter bibliotecas – ou seja, um acervo de livros – de no mínimo um título para cada aluno matriculado, cabendo ao respectivo sistema de ensino determinar a ampliação deste acervo, conforme sua realidade, bem como divulgar orientações de guarda, preservação, organização e funcionamento das bibliotecas escolares.

Pior do que não se habituar ao socorro da leitura é não ter livros para ler e sofrer da falta do espaço silencioso e quase sagrado das bibliotecas, local em que se procuram respostas, se descobrem histórias, se consola dos amores perdidos. Até hoje me lembro dos livros que me acalmaram, que me alegraram, que me prendiam a atenção durante tardes inteiras. Recordo-me dos longos corredores da gigantesca biblioteca da Hebraica de São Paulo, onde disputávamos os novos livros, os novos títulos, reservando-os com antecedência. Com a nova lei, teremos um espaço vivo de sabedoria, um encontro certo com a literatura, e talvez assim voltemos a induzir os jovens a entrar nessa sala mágica, onde se cura a curiosidade, se descobre a ciência e se trata os amores, por mais ingênuos que sejam, como o dos meus 15 anos, encantado com a menina da terceira fila.

Fernando Rizzolo