Democratizando a Saúde

Do ponto de vista social, não há como pensarmos num Brasil justo sem vincularmos o aspecto da saúde pública de qualidade à população de baixa renda. Inúmeros esforços têm sido empreendidos no sentido de promover atendimento digno à imensa maioria do povo brasileiro que depende do Pode Público nessa área. Não bastam apenas investimentos em infraestrutura, como hospitais, equipamentos, laboratórios; é preciso, de forma concreta, aumentar o número de profissionais da saúde, ou seja, da mão de obra especializada.

Muitos estudos levantam a questão sobre qual seria a melhor forma de fazermos maior inclusão na área da saúde à grande massa carente, que, muitas vezes, se encontra longe dos grandes centros médicos e de pesquisa. Todavia, o cerne da questão sempre passa pelo corporativismo, que, munido de dados formalizados, tende a legitimar os próprios interesses, acabando num diversionismo e afastando-se do tema principal, que é a falta gritante de profissonais médicos em nosso país. Ora se opondo à abertura de maior número de faculdades de medicina no Brasil, ora justificando que o problema não é a falta de médicos, mas de distribuição, os órgãos de classe levam ao debate propostas que tentam legitimar o interesse maior: restringir o número de profissionais médicos.

Contudo, em outras áreas da saúde o mesmo não acontece. A quantidade de dentistas vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS) cresceu 49% entre 2002 e 2009. Nesse período, o número de profissionais passou de 40.205 para 59.958 (mais de 19 mil contratações), o que significa maior número disponível de profissionais nessa área. Segundo o coordenador nacional de saúde bucal do Ministério da Saúde, Gilberto Pucca, a expansão dos serviços públicos na área de odontologia é consequência do investimento no Programa Brasil Sorridente – de acordo com o Ministério da Saúde, o Brasil Sorridente recebeu, entre 2003 e 2006, investimentos de mais de R$ 1,2 bilhão. Entre 2007 e 2010, o montante investido alcançará cerca de R$ 2,7 bilhões.

Com o crescente investimento, o número de equipes de saúde bucal passou de 4.261 para 18.982, atendendo 84,8% das cidades brasileiras. As equipes são responsáveis pelo primeiro atendimento e por procedimentos simples, como extração dentária, restauração, pequenas cirurgias e aplicação de flúor. Sobre esses dados podemos concluir que o acesso à formação de profissionais dentistas está mais adequado à demanda necessária à nossa sociedade.

Com base nisso, precisamos lutar para que a grande massa populacional carente, principalmente a que vive distante dos grandes núcleos médico-hospitalares, disponha de um número cada vez maior de profissionais da saúde, como médicos, dentistas, enfermeiros etc. Todavia, só conseguiremos isso investindo na formação desses profissionais, promovendo maior oportunidade a todos no ingresso às faculdades de medicina. Restringir o ensino médico, empurrando talentos para as universidades do exterior, principalmente às da América Latina, por falta de oportunidade no Brasil, é elitizar uma profissão que é o sustentáculo da cidadania e que tutela o único e maior patrimônio da população carente, que é o acesso à saúde a fim de poder usufruir de uma vida mais digna.

Fernando Rizzolo

10 mil médicos em São Paulo trabalham sem direitos, explorados por pseudo-cooperativas

Em sua última edição, a revista “Ser Médico”, do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), revela que 10% dos médicos paulistas (10 mil médicos) estão, devido à terceirização, sem direitos trabalhistas, submetidos a pseudo-cooperativas que são meras intermediadoras de mão de obra.

Levantamento feito pelo Conselho em 2007 apontou a existência em São Paulo de 81 “cooperativas” (fora o sistema Unimed). Nada menos que 65 delas (ou seja, 80%) eram ilegais – não estavam registradas no Cremesp, o que é obrigatório para as instituições médicas.

“As falsas cooperativas funcionam como agências de emprego e não oferecem benefícios ou direitos a seus ‘cooperados’”, descreve a revista, que promoveu debate sobre o assunto, coordenado pelo médico João Ladislau Rosa, primeiro-secretário do Cremesp, com os juristas Nelson Manrich, professor-titular da USP, e Renato Bignami, mestre em Direito do Trabalho e auditor fiscal do Ministério do Trabalho. Os três são membros do Grupo de Estudos sobre Terceirização Irregular no Estado de São Paulo.

“Há grande pressão do setor empregador para escapar da tradicional forma de contrato pela CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas)”, afirmou o advogado Renato Bignami. “As cooperativas proliferaram muito a partir de 1994, com a introdução do parágrafo único no artigo 442 da CLT. Esse parágrafo tem a seguinte redação: ‘Qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela’. A ideia de que todo tipo de cooperativa de mão-de-obra não geraria vínculo empregatício provocou um desvirtuamento exagerado”. Bignami acrescentou que, como a lei das cooperativas diz respeito a cooperativas de crédito, “falta regulamentação sobre os requisitos” do que seria uma cooperativa de trabalho. Essa brecha permite que a legislação trabalhista seja desrespeitada.

“Se elas não são cooperativas, são intermediadoras de mão-de-obra. E toda intermediação de mão-de-obra é ilegal, exceto do trabalho temporário”, definiu o professor Nelson Manrich. “O problema é o cooperativismo como estratégia para burlar a legislação trabalhista. Quando se descobriu a possibilidade de criar uma cooperativa sem vínculo, abrimos uma porteira que desandou”.

“O serviço público contratava médico com vínculo trabalhista bem estabelecido”, lembrou o Dr. João Ladislau. Entretanto, “ocorreu uma proliferação da iniciativa privada na área de saúde. Como o lucro é seu principal objetivo, para alcançá-lo, é preciso baratear custos. Baratear o trabalho médico foi um dos mecanismos. Porém, o médico não é um profissional barato, a sociedade gasta muito em sua formação. O médico, que antes era contratado pela CLT, passou a ser obrigado a participar de uma ‘cooperativa’, ou se transformar em pessoa jurídica ou montar microempresas e sociedades com participação societária de 1%”.

“Em relação à cooperativa, o que interessa ao Direito do Trabalho é se há, de fato, participação do médico como sócio ou se ela é utilizada para intermediar mão-de-obra e fugir de encargos”, disse o professor Manrich. “Estamos constatando que grande parte é fraudulenta. Se alguém trabalha com subordinação deve ser registrado como empregado. Eliminando encargos, reduzo custo e consigo competir com outro. Numa sociedade de cinco médicos que precisa aumentar mão-de-obra, chama mais dois e os coloca com 1% de cota. Eles são sócios? São empregados, têm hora para chegar e sair, não participam dos lucros da sociedade. É uma fraude”.

“O médico ser obrigado a entrar em determinada relação contratual já é indício de fraude”, afirmou o advogado Renato Bignami. “Quando sua situação piora, comparada à se tivesse vínculo, é outro indício. Não é segredo que os médicos recém-formados têm de abrir pessoa jurídica para entrar em determinada estrutura. São todos clássicos sinais de fraude e precarização do trabalho”.

Bignami considera que “a americanização precarizou nossa saúde. A estrutura privada existente emprega médicos para fazer frente à necessidade de redução de custos e abarcar maior número de clientes da classe média. Temos serviço médico excelente para quem tem dinheiro, a classe média tenta abocanhar o que sobra disso na área privada, e a população de baixa renda utiliza a rede pública sucateada. Quando há redução de custos, ele se dissemina de forma hierarquizada, de cima para baixo, e avança para todos os lados. E a precarização é forte entre recém-formados”.

Para o Dr. João Ladislau Rosa, não somente os recém-formados, mas “um exército de médicos e outros profissionais sobrevive dessa maneira e grande número deles pula de emprego em emprego. A falsa cooperativa é um dos instrumentos responsáveis por essa situação e, algumas, têm contratos em várias cidades da Grande São Paulo”.

Entrando nas soluções, Renato Bignami considerou que “onde não há regulação, vigora a plena liberdade e a lei do mais forte. Sempre que o Estado edita regulação é para procurar equilibrar forças, para que a sociedade avance de forma mais igualitária. O que o Cremesp verifica atualmente é só a formalidade das empresas. E, formalmente, essas cooperativas estão em ordem. Porém, o objetivo da cooperativa é prestar serviço ao próprio associado e não para o tomador. Esse é o ponto principal”.

Concordando com Bignami, o professor Manrich acrescentou que “outro caminho é a parceria com outros órgãos para levantar elementos à revisão dos critérios hoje estabelecidos, de tal maneira que pudesse eliminar, na origem, cooperativas fraudulentas”.

Hora do Povo

Rizzolo: Muitas são as formas de se burlar a legislação trabalhista, e segundo o texto, os médicos estão sendo vítimas das chamadas ” cooperativas de fachada”. Como no Brasil a saúde passou a ser considerada “bem de comércio”, o médico por conseqüência passou a ser um elemento dessa cadeia cujo lucro é o desiderato principal.

Não podemos aceitar que a nobre classe médica deste país seja aviltada através de manobras espúrias do ponto de vista trabalhista. O povo brasileiro, o trabalhador, vê na figura do médico alguém que preserva seu único patrimônio: a saúde. Como bem sublinha a Cremesp, “o objetivo da cooperativa é prestar serviço ao próprio associado e não para o tomador. Esse é o ponto principal”. De qualquer forma devemos rechaçar essa forma de remuneração médica, e cerrarmos fileira no sentido de estabelecer dignidade a estes profissionais da saúde!