Uma questão humanitária, não tributária

*por Fernando Rizzolo

Ela estava lá, bem ao lado do corredor, envolta no cheiro típico dos grandes hospitais, um cheiro que lembra assepsia e tristeza. O movimento era intenso, pessoas passavam por ela, deitada naquela maca, e sem notá-la por certo, por entender que era apenas mais uma; dessa forma, mal podiam perceber sua dor, seu desespero, seu abandono. Com certo cuidado, tentei me aproximar da pobre mulher e constatei seu sofrimento na longa espera para ser atendida num dos maiores hospitais públicos do país.

Por um instante, como se fosse um filme daqueles de cunho documentário, me vieram inúmeras imagens de pessoas na mesma condição, e que naquele exato momento sofriam o desalento de ser obrigadas a sofrer no corredor frio de um hospital por um simples motivo: a insensibilidade do poder público com a saúde dos pobres. Questionei, então, onde estaria a dignidade humana quando milhares de pessoas humildes, hipossuficientes, sem recursos, agonizam por falta de uma estrutura digna da saúde pública? Quais argumentos tributários, econômicos, poderiam superar o sofrimento, o desespero de um pai ou mãe da periferia ao ver seu filho não ter assistência digna por parte de um hospital público nesse imenso Brasil?

Ao tomar conhecimento de que os governadores do PSB articulam a criação de um novo imposto para financiar a saúde, a CSS (Contribuição Social para a Saúde), pude refletir que existe nessa iniciativa algo muito maior do que a criação de um novo imposto (que não pode ser sonegado). Pude enxergar quão nobre seria todos nós nos unirmos para definitivamente oferecer uma saúde pública digna e próspera ao pobre povo brasileiro. Não há que se falar, ou questionar, de forma alguma, aspectos tributários, arrecadatórios, ou argumentações de cunho econômico numa visão mercadológica quando a questão é a saúde do pobre trabalhador e sua família.

Muito mais do que ajuda humanitária que arrebata nossa consciência nas tragédias no exterior, devemos nos consternar e nos voltar para o que ocorre com os doentes da rede pública no nosso país, com os seus familiares, com as pálidas crianças brasileiras que carecem de um atendimento humano e digno. Transformar o debate sobre a legitimidade da CSS é privilegiar o capital, o egoísmo, o individualismo e a indiferença, ignorando o sofrimento daqueles que – ao contrário dos defensores de uma “reforma tributária urgente” – não possuem planos de saúde que dão acesso aos melhores hospitais do Brasil e a todos os tipos de tratamento médico na esfera particular.

Cerrar fileira contra a CSS é chancelar o sofrimento do próximo, anestesiando a essência de um Brasil mais justo, mais humano, e mais atento aos que nos corredores dos frios hospitais públicos agonizam pela atenção do Estado – que deve ter uma visão mais humanitária e menos tributária para que todos passem a gozar de uma vida digna e menos sofrida. As bases de uma discussão sobre um imposto para a saúde dos pobres devem, acima de tudo, surgir num ambiente político humanitário, e não no alto dos prédios da Avenida Paulista, sob o comando de empresários que se dizem “socialistas”, exceto quando se trata de pagar impostos para o bem comum.

Inclusão Social e a Saúde

Como sabemos, não há mais espaço na América Latina para as políticas que visam apenas ao desenvolvimento industrial, que beneficiam a especulação financeira ou que, de maneira indireta, socorram somente uma parcela da sociedade privilegiada, em detrimento de uma grande população carente em todos os sentidos. Os governos da atualidade, incluindo o dos Estados Unidos, pontuam a questão da inclusão social como forma de enfrentar os problemas da miséria – que atinge boa parte da população mundial – com programas específicos.

Não podemos nos referir à inclusão social apenas como uma questão de transferência de renda, mas devemos vinculá-la à participação dos meios de que dispõe o Estado na garantia dos direitos fundamentais previstos na nossa Carta Magna, como educação, saúde, trabalho, entre outros, como tem norteado alguns programas como o Bolsa-Família, que vincula o recurso à educação dos filhos. Contudo, numa visão mais abrangente, podemos verificar que, muito embora exista a boa intenção, alguns direitos acabam sendo preteridos pelo Poder Público, sob a justificativa econômica, os quais, na realidade, perfazem a essência do que chamamos de real inclusão social, como, por exemplo, a prestação adequada dos serviços de saúde pública à população necessitada.

Do ponto de vista meramente material, a referência à inclusão social, incidindo apenas na condição do poder de compra, é uma das más-formações conceituais de um programa real de inclusão. De forma prática, temos de margear a transferência de renda, dando o devido suporte aos demais direitos fundamentais do cidadão, como a saúde pública, otimizando de modo global a conceituação de inclusão, tendo em vista que, de nada adianta apenas aumentar o poder de compra, ou seu reflexo futuro na educação, se não adequarmos a esse aumento uma saúde pública de suporte, eficaz, àqueles que passam a integrar a sociedade, por intermédio dos notórios programas de transferência de renda.

Nessa esfera de pensamento, defrontamo-nos com a imperiosa necessidade de disponibilizarmos recursos à saúde como forma primordial de sustentabilidade dos programas inclusivos, valendo-nos de impostos como a CSS (Contribuição Social para a Saúde), que visa dar uma estrutura financeira direta ao desenvolvimento dos programas de assistência à saúde, tanto de adultos quanto de crianças. A abrangência conceitual da inclusão social passa cada vez mais pela visão plena da satisfação do cumprimento dos direitos fundamentais previstos na Constituição, sob pena de apenas estarmos avalizando o mero consumo, promovendo uma cadeia consumista de estrito cunho material, deixando de vincularmos o essencial, que é a inclusão da população carente num todo, exercitando as prerrogativas saudadas pela nossa Constituição, que, por excelência, é humana e progressista.

Fernando Rizzolo

A CPMF e o pito de Adib Jatene: ”Rico tem que pagar imposto”

O cirurgião cardiologista e ex-ministro Adib Jatene ganhou notoriedade no debate sobre a CPMF, ao passar um pito no presidente da Fiesp, Paulo Skaf, flagrado pela jornalista Mônica Bergamo. Skaf, à prente da poderosa entidade do capital industrial, está em campanha, pelo fim da CPMF. O cardiologista e ”pai” da CPMF, segundo Mônica, falou alto e de dedo em riste ao empresário: ”No dia em que a riqueza e a herança forem taxadas, nós concordamos com o fim da CPMF. Enquanto vocês não toparem, não concordamos. Os ricos não pagam imposto e por isso o Brasil é tão desigual. Têm que pagar! Os ricos têm que pagar para distribuir renda”, disparou.

Skaf tenta rebater (sempre conforme a colunista da Folha de S.Paulo): ”Mas, doutor Jatene, a carga no Brasil é muito alta!”. E Jatene: ”Não é, não! É baixa. Têm que pagar mais. Por que vocês não combatem a Cofins (Contribuição para Financiamento da Seguridade Social), que tem alíquota de 9% e arrecada R$ 100 bilhões? A CPMF tem alíquiota de 0,38% e arrecada só R$ 30 bilhões”. Skaf desconversa: ”A Cofins não está em pauta. O que está em discussão é a CPMF”. E Jatene, certeiro: ”É que a CPMF não dá para sonegar!”

Dedo na ferida com precisão cirúrgica

Jatene tem uma carreira política tortuosa, que o levou à Arena (partido da ditadura militar) e aos ministérios de Fernando Collor e Fernando Henrique. Mas estava coberto de razão em seu diálogo acalorado com Skaf, no restaurante chique A Figueira Rubaiyat. Ele pôs o dedo na ferida com precisão cirúrgica.

O verdadeiro problema tributário do Brasil é que os ricos têm que pagar imposto, e não pagam. Na hora de discutir a CPMF, eis que o ex-PFL, a Fiesp & Cia vêm a público como paladinos do ”contribuinte”. E esquecem de dizer que, no sistema tributário atual, o trabalhador assalariado é quem paga a conta, enquanto o banqueiro, no vértice dourado da pirâmide social, escapa.

Brasil: o paraíso dos bancos

Em outra ponta do leque ideológico brasileiro bem distante de Jatene, o Unafisco (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita federal), ligado à Conlutas, publicou um artigo do seu Departamento de Estudos Técnicos que expressa em números essa deformidade. É sobre a arrecadação tributária em 2006, escrito por Álvaro Luchiezi Júnior, Clair Hickmann e Evilásio Salvador, com o eloquente subtítulo Brasil: o paraíso dos bancos.

O texto, fartamente ilustrado por tabelas, mostra que a arrecadação de impostos realmente não pára de crescer: descontada a inflação, subiu 29,54% no segundo governo de FHC, e mais 19,81% no primeiro mandato de Lula. Porém essa carga pesada não recai por igual sobre todos: ”Os dados revelam que a tributação sobre o consumo e a incidente sobre os salários dos trabalhadores responderam por 65% dos tributos arrecadados pela Receita Federal, em 2006”.

Regalias e truques do contribuinte-banqueiro

Do total arrecadado, ”mais da metade (54%) advém de tributos arrecadados sobre o consumo. As famílias de baixa renda são as mais prejudicadas por esta estrutura, já que os gastos com consumo são relativamente maiores na medida em que renda familiar diminui”, aponta o artigo. E dá os dados do IBGE: ”As famílias
com renda de até dois salários mínimos arcam como uma carga tributária indireta de 46% da renda familiar, enquanto as famílias com renda superior a 30 salários mínimos gastam 16% da renda em tributos indiretos” (!).

”A evolução da arrecadação tributária das empresas constitui um caso à parte”, prossegue o estudo. ”Dois grupos de tributos chamam a atenção por razões opostas: de um lado, um grupo de tributos composto pelo Imposto de Renda – Pessoa Jurídica (IRPJ) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), cuja evolução foi positiva; por outro lado, o grupo formado pela Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e pela Contribuição para o PIS/Pasep, que apresentou um crescimento bastante tímido.” Vale notar a referência à Cofins, o mesmo imposto que, segundo Jatene, não é questionado porque ”dá para sonegar”.

”Em ambos os casos, o resultado da arrecadação tributária foi influenciado pelo setor financeiro da economia. O montante arrecadado de IRPJ e CSLL cresceu, em termos reais, 5,25% e 2,99% respectivamente, chamando a atenção o crescimento de 20,68% e 12,68%, respectivamente, recolhidos pelas instituições financeiras. À primeira vista esta evolução demonstraria um maior potencial de arrecadação do setor financeiro ou mesmo um incremento da tributação sobre os bancos. Contudo, não é isto o que ocorreu de fato.”

Mais artifícios e jogadas

”Apesar do aumento expressivo dos lucros dos bancos – os 10 maiores tiveram um crescimento de 23,87% e o conjunto do sistema financeiro apresentou aumento de 35,14%, no período de janeiro a setembro de 2006, em relação ao mesmo período do ano anterior —, a arrecadação de tributos desse setor permanece pequena em relação às demais setores da economia”, mostra o estudo.

”A participação dos bancos no total das receitas administradas pela SRF é pífia, apesar dos lucros extraordinários. As instituições financeiras, apesar do pequeno acréscimo no recolhimento de tributos (5,38%, em termos reais), respondem por apenas 5,11% das receitas administradas pela SRF. Os tributos que incidem diretamente sobre a renda dos bancos têm um peso de somente 3,27% nos tributos recolhidos pela Receita Federal”, diagnostica.

O texto explica como os banqueiros lançam mão de artifícios, como o de descontar prejuízos de exercícios anteriores, para pagar menos imposto que quem vive de salário. ”As instituições financeiras têm aproveitado todas as brechas legais, inclusive fazendo interpretações próprias da legislação, para escaparem do seu dever tributário”, prossegue. Mostra que no ano passado, em termos reais, as instituições financeiras recolheram penos PIS (queda de 5,74%) e menos Cofins (13,08% a menos), usando, entre outros recursos, uma brecha criada pela Lei 9.718/98.

”Renúncia fiscal a favor da renda do capital”

Nem só os banqueiros comparecem no levantamento do Unafisco como beneficiários de mágicas tributárias. Empresas estrangeiras, diz o texto, optaram pela remessa de juros sobre capital próprio para aproveitar o real supervalorizado e enviar recursos para fora do país. Há também a isenção de imposto de renda na remessa de lucros e dividendos ao exterior. Outros grandes capitais tiraram partido da dedução de juros sobre o capital. O estratagema, ”único no mundo”, é socialmente perverso, ”porque o rendimento do capital acaba não sendo submetido à tributação progressiva, mas apenas à proporcionalidade, o que fere os princípios da igualdade e da progressividade estabelecidos pela Constituição Brasileira de 1988”.

Já a arrecadação do Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) sobre os Rendimentos do Trabalho alcançou R$ 39,6 bilhões no ano passado, um aumento de 5,5% acima da inflação, acima também do crescimento da massa salarial, que foi de 5,04%, apesar do reajuste de 8% na tabela do IR.

Conclusão do estudo técnico: ”O Estado brasileiro vem praticando uma renúncia fiscal a favor da renda do capital”. Foi o que Adib Jatene disse, com menos números e mais ênfase, ao apontar o dedo para o presidente da Fiesp. Isto é também o que será preciso discutir, para começo de conversa, no dia em que o Brasil tiver a coragem de enfrentar para valer a questão crucial da reforma tributária. Para começo de conversa, porque Jatene, ao passar sua descompostura em Skaf, menciona também a taxação da riqueza e da herança, que trabalho do Unafisco não menciona.

Por Bernardo Joffily

Site do PC do B

Rizzolo: É como eu sempre digo, e fico feliz ao saber que o Dr. Jatene, pai da CPMF, cerra fileira na luta contra o egoísmo perverso da elite, principalmente paulistana, que não gosta de pagar imposto, é insensível à população pobre, e tentar golpear o governo e aos avanços sociais. Como é possível, o camarada empresário, (e não estou falando especificamente do Skaf) que não sabe o que é miséria, tem a sua disposição os melhores médicos, viaja ao exterior à vontade, disponibiliza as melhores escolas aos seus filhos, se alimenta adequadamente, gasta com roupas de grife, tem empregados que lhe servem, e ainda, não quer pagar impostos ? Ou se quer, quer um tipo de imposto que ele possa sonegar, enganar, dissimular a União para que não transfira essa renda ao pobre. Isso é justo? Não, isso é antipatriótico, amoral, e merece um dedo em riste sim, ou voltar ater aulas de catecismo, na primeira igreja que encontrar. Vergonhoso, não?

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